domingo, 19 de julho de 2015

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

EU SEI, MAS NĀO DEVIA
(Por Suzi)

Você, ao menos, já ouviu falar em Marina Colasanti. Mas sabia que Marina nasceu na Etiópia, em Asmara, que morou 11 anos na Itália e só então veio viver no Brasil? Sabia que é casada com Affonso Romano de Sant'Anna, o mineiro, poeta e escritor? Pois é, eu não sabia... Descobri isso há alguns anos.

Com "Eu sei, mas não devia", livro que contém o texto que você vai ler agora, Marina Colasanti ganhou, em 1997, o Prêmio Jabuti. Há diversos fragmentos dessa crônica espalhados pela internet, mas hoje eu gostaria que você gastasse dez minutos do seu domingo de inverno brasileiro pra ler, calma e refletidamente, o texto em sua integralidade - e eu vou fazer o mesmo, de novo -, para que a gente, de uma vez por todas, pare com isso de "se acostumar", pra evitar feridas, pra poupar a vida; vida que aos poucos se gasta e, antes mesmo do final, se perde de si mesma.

Eu sei, mas não devia
(Marina Colasanti in "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco.) 

"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."

E eu não poderia deixar de acrescentar, aqui, dois trechos de cartas de um grande escritor, chamado Paulo, e que já cantou essa pedra há muitos e muitos anos...:

“Portanto, prestem atenção na sua maneira de viver. Não vivam como os ignorantes, mas como os sábios. Os dias em que vivemos são maus; por isso aproveitem bem todas as oportunidades que vocês têm.” (Efésios 5:15-16 - Bíblia, Nova Tradução na Linguagem de Hoje - NTLH)

“E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”
(Romanos 12:2 Bíblia, versão Almeida Revista e Corrigida - ARC)

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Suzi, convidada para estar com a gente neste domingo, escreve para o Blog da Suzi - ainda que, nos últimos tempos, esteja fazendo isso com menos frequência do que gostaria.
A turma do #entaoserve agradece à Suzi por aceitar o convite.


2 comentários:

  1. Eu sei. Mas não devia. Se é que me entende.

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    1. Então eu vou com versos de Tom Jobim:
      "Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim..."
      Bom domingo de boas e agradáveis surpresas, Amigão!!!

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