NEM SEMPRE POSSO OUVIR VOCÊS
Maria Paula – Niterói/RJ
A minha melhor amiga é surda. Na verdade, ela é mais que amiga. Deus nos concedeu a graça de termos laços sanguíneos. Minha melhor amiga é minha prima. Crescemos juntas, na região Nordeste do Brasil, mais precisamente em Natal, capital do RN.
Brincamos de tudo o que uma criança tem direito: subir em árvores, encenar narrativas inventadas por nós mesmas e nossos irmãos, reviver experiências (escolinha, santa ceia e afins). Tínhamos umas brincadeiras exóticas, também, como a da moradora de rua que se encontrava com uma mulher extremamente rica que lhe tirava da pobreza extrema. Vez ou outra brincávamos de encenar esse drama, por nós inventado, e que tinha um final feliz. Gostávamos de finais felizes.
O tempo passou e quando minha prima tinha 10 anos, e eu oito, soube que ela e sua família se mudariam para São Paulo. Não teríamos mais as nossas aventuras com frequência e eu não teria mais que explicar pras pessoas o que ela estava falando, caso não entendessem (o que acontecia com mais frequência do que gostaríamos... às vezes, acho que as pessoas têm um pouco de má vontade para entender as outras... naquela época, ela não falava como uma ouvinte nativa do português oral, mas como uma surda oralizada... e dava pra entender, sim).
Quando soubemos da mudança, além da despedida entre famílias - a minha e a dela - com abraços, minha mãe despediu-se com um livro, de nome "Nem sempre posso ouvir vocês". Minha prima já lia muito bem e entendia o que as pessoas falavam fazendo leitura orofacial, então minha mãe lhe disse para levar esse livro para a nova escola, no primeiro dia de aula, e mostrar à professora. E, assim, ela o fez.
Era preciso que soubessem que, nem sempre, ela poderia ouvir. Era preciso que algo muito importante fosse comunicado. Era preciso comunicar a diferença.
Comunicar é tornar comum, e nossas diferenças são a coisa mais comum do mundo. É preciso tornar comum até o que é comum. As coisas não são claras até que falemos sobre elas. Falar sobre as diferenças é, muitas vezes, um tabu. Parece haver certo medo (que não dá pra saber se é anterior ao preconceito ou não) de falar abertamente sobre o assunto.
Mas, na verdade, qual seria a graça do mundo se fôssemos todos iguaizinhos? Tenho, em mim, a ideia de que Deus criou todos diferentes para que cada um pudesse ser amado de um jeito único. A igualdade do amor de Cristo é amar a cada um dentro da possibilidade individual de compreensão desse amor. Ele ama de um jeito que cada um pode se sentir amado.
Uns nem sempre podem nos ouvir, outros talvez não andem com suas próprias pernas, mas o amor de Cristo pode alcançar a todos quando Ele nos chama para sermos pequenos Cristos para quem, talvez, não se sinta amado.
Que sejamos nós os ouvidos de quem nem sempre pode ouvir e as pernas de quem não caminha com elas. O ouvido amigo oferece atenção e se mostra presente em momentos de angústia. As pernas nos levam aos destinos desejados e podem nos ajudar a carregar quem precise chegar lá.
Como dizem por aí: que sejamos nós a mudança que queremos ver no mundo.
E que, sempre, possamos ouvir o outro - se não com os ouvidos, ao menos com o coração.
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