FALÊNCIA
DO TEMPO
Larissa Oliveira – Bento Ribeiro
Um texto de Julián Fuks
Ensaio: Falência do tempo - Pandemia
provoca a ilusão de um futuro desfeito
Este
é um tempo de falências. Por toda parte nos chegam notícias de uma falência
múltipla: de órgãos corporais, de sistemas de saúde, de famílias, de empresas,
da razão, da presidência. E de todas as falências que compõem este tempo,
talvez a mais discreta, embora manifestada em tantos detalhes e sentida por
muita gente, seja a falência do próprio tempo.
Ouço
dos amigos, dos parentes, ouço dos desconhecidos que me alcançam em vídeos
cômicos ou melancólicos: isolado em quarentena, o tempo estancou e se recusa a
exercer o seu efeito. As horas se repetem, indistinguíveis, indiferentes, e
revelam sua absoluta inutilidade, dispostas apenas a expor o cortejo das nossas
tragédias. Às notícias interminavelmente tristes, somam-se a impotência, o
temor, o tédio, o desalento, e assim vão produzindo algo como um inchaço do
presente - que ofusca até mesmo o passado mais próximo, e parece bloquear a
vista do futuro inteiro.
Não
será a primeira vez que se revela a maleabilidade do tempo, sua subjetividade,
sua submissão às leis da incerteza. Sobre a relatividade do tempo, aliás, a tão
atacada ciência já cuidou de oferecer fórmulas convincentes. Em situações críticas,
porém, não é absurdo dizer que a imprecisão se agrava, que relógios e
calendários se mostram ainda mais descartáveis, arbitrários, infames.
O
alemão W. G. Sebald devotou quase toda sua obra literária, das mais potentes da
nossa época, a compreender as nuances do trauma histórico. É na boca de
Austerlitz, seu personagem mais emblemático, que ele situa palavras sobre o
tempo, que "não avança de forma constante, mas se move em redemoinhos",
que é marcado por "estagnações e irrupções", que "evolui sabe-se
lá em que direção". Habitado pelo trauma desde a infância, Austerlitz por
vezes se deixa tomar pela esperança de que o tempo não passe, para que nada
tenha se passado, para que não seja verdade o que conta a História.
Imersos
como estamos no âmago de um possível trauma, coletivo e disperso, não é fácil
decifrar o sentido da paralisia temporal que nos toma. Não é o passado o que
tentamos negar agora, pelo contrário: a maioria de nós parece contemplar até
com certa nostalgia os meses, as semanas, os dias que antecederam este presente
atípico. Eram dias de liberdade e inocência: saíamos às ruas, fazíamos festas,
abraçávamos os amigos, desconhecíamos a medida da contenção que logo tomaria
conta de tantas vidas. Vivemos agora uma ausência desse passado, como se ele
tomasse distância e já não nos pertencesse.
"Os
mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes nos leitos das
suas casas ou dos hospitais, e não são só eles, pois um tanto de infelicidade
pessoal já basta para nos cortar de todo o passado e de todo o futuro",
descreve Austerlitz. Nós, em nosso tempo, percebemos que basta a iminência da
dor e da infelicidade, ou basta que adquira um caráter amplo e social, para que
toda a ordem temporal colapse.
O
futuro é o que mais estremece, o que mais gera desconfiança. Por toda parte se
propaga o discurso de que o mundo mudou para sempre e jamais seremos os mesmos.
Em tal discurso, o futuro é estreito, não se estende além dos próximos meses,
do próximo ano, desconsidera a possibilidade dos anos plurais, das décadas. Nessa
ausência de horizonte, a paralisia do tempo se torna paralisia geral, se torna
pandêmica. Tantos de nós vamos cancelando projetos, e nos parecem insensatos os
trabalhos que faríamos, as festas que daríamos, inúteis as aulas que poderíamos
cursar, fúteis os livros que escreveríamos.
Contra
toda a paralisia, entre as muitas ações que o presente nos exige, talvez não
seja pouco importante a luta contra a falência do tempo. Ou melhor, a luta contra
a ilusão de que já não há tempo, de que o passado não nos pertence, de que o
futuro caducou ou inexiste. Não deixemos que a obscuridade do presente nos
cegue: é amplo o horizonte do tempo e é em direção a ele que avançamos. Todo
projeto, todo trabalho, todo livro encontrará ainda o seu momento.
Pois
o tempo, é Borges quem diz, não é mais que a sucessão, a incontível cadeia de
acontecimentos. Enquanto todos dormem, ou batem panelas, ou ouvem inertes os
estúpidos pronunciamentos, o silencioso rio do tempo está fluindo nas ruas, nas
praças, nos campos, no espaço, está fluindo entre os astros. Não há de demorar o
dia em que as notícias ruins serão esparsas, e em que saberemos contar outras histórias.
Não há de demorar o dia em que despertaremos para ver que o presente virou
passado, e que um futuro inteiro nos aguarda.
Publicado em: 24/04/2020
“Só eu conheço os planos que tenho para
vocês: prosperidade e não desgraça e um futuro cheio de esperança. Sou eu, o
Senhor, quem está falando.” Jeremias 29:11
Um
forte abraço!
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Fonte/Referência:
“Falência do tempo - Pandemia provoca a
ilusão de um futuro desfeito” - disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/04/24/ensaio-falencia-do-tempo---pandemia-provoca-a-ilusao-de-um-futuro-desfeito.htm
- acessado em 25.04.2020.
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